segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Segunda balada da casa da costura


Segunda balada da casa da costura

Vinha a Dona Ludovina
Costurar era o seu fado
Se a hora era vespertina
O tempo era ilimitado.
Nessa casa da costura
Houve sempre surpresa
Se as linhas eram ternura
Um resultado em beleza.
Fosse botão ou baínha
Fosse baínha ou botão
Nenhuma ficava sozinha
No meio da solidão.
Os vidros desta janela
Rua que foi do Castelo
São a vida paralela
Da lã que está no novelo.
Velha casa de costurar
Camisas novas eu tinha
Se eram velhas ao par
Nascia uma novinha.
Só mudava o colarinho
Feito de punhos sem prata
No Verão que era certinho
A chegar sempre na data.
Minha memória perdida
Na casa onde a costura
Só ficou na minha vida
Porque a balada procura.     

José do Carmo Francisco

(ilustração de autor desconhecido)

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Balada para Carlos Paredes


Balada para Carlos Paredes

Na mais teimosa vontade
Entre as cordas e os dedos
Nasce um rumor na cidade
A empurrar velhos medos
Era o mundo a duas cores
Dentro dumas fotografias
Meia dúzia de senhores
Confiscavam nossos dias
Se para uns era SACOR
E bons empregos escassos
Para outros era MABOR
E o pior para nossos braços
A guitarra é uma bandeira
Que juntou esta multidão
Entre o Rossio e a Ribeira
A água azul dum camião
De autocarro muitas vezes
Entre Benfica e Sete Rios
A música dos portugueses
Não precisava dos fios
Nem rádio nem televisão
Davam a exacta medida
O esplendor duma paixão
Mais forte do que a vida
Os sons desta melodia
Resistem a toda a usura
Se os oiço hoje em dia
Envolvidos em ternura
A força da qualidade
Bateu um acorde triste
Na luz da posteridade
Carlos Paredes resiste

José do Carmo Francisco   

(Fotografia de autor desconhecido)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Casa dos Açores


Casa dos Açores

Anabela queria estar mas não podia
Na música e na palavra em recital
A chuva, a tempestade e a ventania
Não a deixavam viajar até à capital.
Nos seus olhos se desenha o Universo
Na sua voz Terra e Água, a Geografia
Um som concentrado mas disperso
Resume toda a origem da Poesia.
Que é juntar de novo o que a morte
Nos ajudou a separar em cada dia
Como se fosse uma oração mais forte
Do que a ganga de toda a nostalgia.
Carla Seixas tocava e Sidónio dizia
A palavra mais perdida e levantada
Foi um tempo de completa harmonia
Na cidade ficou serena a madrugada.

José do Carmo Francisco      

(Fotografia de autor desconhecido)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Topogénese de um poema


Topogénese de um poema

O poema começa por ser uma tabela
Pequena folha de papel na madrugada
Tu abrias no quarto andar uma janela
Para medir a fila de trânsito tão parada

Depois é um olhar mais longe mais além
Para estudar as nuvens do lado de Lisboa
Mais leves que as de Sintra e do Cacém
A assustarem este bando que te sobrevoa

O poema começa por ser uma tabela
Pequena tábua onde registo indicações
Nesta hora em que uma linha paralela
Já se insinua tão devagar nas emoções

Vejo a pomba de metal no fim da rua
Vejo um bando assustado a regressar
A sombra que ficou não sei se é tua
Nem sei se afinal é este o teu lugar  

José do Carmo Francisco

(Óleo de Jurgen Geier)