sexta-feira, 27 de maio de 2016

A voz de Paulo Bragança


A voz de Paulo Bragança

Chamar-lhe pura é pecar mas por defeito
A tua voz é (ela mesma) a nossa origem
Há um país, uma nação dentro do peito
Estar a ouvir é estar à beira da vertigem

Há uma luz que se prolonga na extensão
Há uma viagem a fazer dentro da voz
Ouvir-te é ser o destino de uma oração
A ligar de novo quem se julgava a sós

Chamar-lhe pura é pecar mas por defeito
A tua voz é a que sabe juntar água e terra
Cantas e és o rio que fugiu já do seu leito
À procura de novos campos para a guerra

Quando tu cantas não há águas paradas
Na terra fértil da humidade, teu terreno
E há uma guerra, batalhas, emboscadas
Lá onde chega a tua voz e o teu veneno 

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Maria Eugénia


Maria Eugénia

Guardei o teu cartão nas folhas de uma agenda
As letras todas em azul, o teu nome manuscrito
Passados estes anos já faz parte de uma lenda
E dum espaço demarcado ele passou ao infinito

Veio acompanhar um pacote com novidades
De livros novos todos à espera de uma leitura
Contra o bulício e a pressa das nossas cidades
E o esquecimento que caiu sobre a agricultura

Nos nossos campos perdem-se as sementeiras
Tal como nas cidades se perdem os velhos laços
Das palavras mais essenciais e mais verdadeiras
Hoje fora dos seus valores e dos seus espaços

Quando veio nos livros ele foi lido como prenda
Trazia e conservava todo o calor do teu punho
Guardei o teu cartão nas folhas de uma agenda
Passados todos estes anos é cartão e testemunho 

José do Carmo Francisco

(òleo de Remy Boquiren)

domingo, 8 de maio de 2016

Salinas

Salinas

O sal da minha terra era daqui que vinha
Trazido em vagarosos carros de madeira
O abegão guiava os bois pela manhãzinha
E o destino do sal era a nossa salgadeira

O sabor dessa carne ficava ao nosso gosto
O lume fazia de cada refeição uma festa
Pelo tempo fora desde manhã ao sol-posto
A terra esperava tão incauta e tão honesta

Por quem lhe trazia o adubo feito de suor
A querer multiplicar a grande sementeira
No perfume da ternura, na força do amor
Duma vida mais dura mas mais verdadeira

O sal da minha terra era daqui que vinha
Dois quilómetros-hora, baixa velocidade
Anos depois esta memória está sozinha
O lugar da salgadeira é hoje uma saudade

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Artur Pastor)