quarta-feira, 8 de março de 2017

A voz de Cristina


A voz de Cristina 

Começa o dia num sussurro matinal mas, aos poucos, aumenta o seu volume, amplia o timbre e, quando sai de casa a caminho do trabalho, a voz de Cristina é já uma bandeira de alegria e de coragem para enfrentar todos os obstáculos e todas as confusões do seu e nosso quotidiano. A voz de Cristina é límpida, cheia, alta e traz no seu desenho sonoro um calendário de afectos. Ouvir a sua voz é sentir as memórias e os perfumes da chuva de Janeiro, do frio de Fevereiro, da geada de Março, das flores de Abril, das trovoadas de Maio, das cantigas de Junho, da calor de Julho, do luar de Agosto, das vindimas de Setembro, das folhas secas de Outubro, das azeitonas de Novembro e das lareiras de Dezembro. Todas as quatro estações do ano entram e permanecem na voz de Cristina. Durante o dia, porém, a voz de Cristina suspende a musicalidade e transforma-se num instrumento de trabalho: da sua maneira de falar, acolhedora e eficiente, dependem ligações telefónicas essenciais à transmissão de notícias vindas de todos os continentes. Resultados desportivos, transferências de jogadores, as grandes esperanças sempre renovadas no início da época desportiva. Ao fim da tarde a voz de Cristina é, ela mesma, uma notícia. A notícia de um regresso a casa, das tarefas transparentes dum ofício sem remuneração, do inventário e do balanço do dia da filha Raquel.

A noite fecha o ciclo dos tons da sua voz. O cansaço de mais um dia de trabalho traz à voz de Cristina uma lenta suspensão e um ritmo cadenciado que, aos poucos, se vai aproximando do registo do seu primeiro sussurro matinal. Um som como que saído da limpidez da água pura, distante e intocada das origens do Mundo.      

José do Carmo Francisco

(Óleo de Amedeo Bocchi)  

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