sexta-feira, 24 de março de 2017

Uma voz no centro do Mundo


Uma voz no centro do Mundo

As vozes de algumas mulheres, tal como as montanhas, os rios e as planícies, também se integram numa geografia determinada. Circula também dentro dessas vozes o ímpeto do vento nas alturas, o murmúrio das águas dos rios e o silêncio sem fim das planícies.
O mundo de Cristina nasce todas as manhãs na força do rigor inicial dessa voz antiga que se solta dos cadeados da noite e começa a percorrer as encostas do dia.
Depois, no acumular das horas envolvidas em monotonia, Cristina vai organizando a sua gramática de afectos. Conforme a temperatura da resposta, logo se apercebe a origem provável da pergunta telefonada. Na rua em frente, a janela de Cristina desvenda um dos filmes mudos mais frequentes na cidade de Lisboa: o reboque da Polícia Municipal vai recolhendo um a um os automóveis estacionados fora das linhas brancas desenhadas na pedra negra da calçada. Antes tinham passado pela rua raparigas de farda verde despejando papéis brancos nas escovas de borracha do vidro da frente dos automóveis.
Aos poucos, de modo vagaroso mas firme, a voz de Cristina instala a sua ordem no centro do Mundo. Respira na velocidade por si utilizada no discurso com que ordena as entradas e as saídas de informações em circulação, no seu tempo e no seu espaço. Entre vida e morte, luz e escuridão, alegria e desolação, ruído e silêncio, amor e ódio, a voz de Cristina está no centro do Mundo. Centenas de notícias, de recados, de pedidos, de avisos e de recomendações circulam pela força da sua voz. Uma voz sempre capaz de incorporar no seu desenho sonoro o ímpeto do vento das alturas, o ruído das águas dos rios e o silêncio sem fim das planícies.     

José do Carmo Francisco  

(Óleo de Emile Chambon)  

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