terça-feira, 18 de abril de 2017

Dissertação sobre um amor


Dissertação sobre um amor

O amor não morre nunca. Todos os dias nasce de novo com a madrugada. Então rompe na escuridão mais negra e do silêncio mais fundo, empurra com força a névoa e canta, canta a idade da sua paixão. O amor não morre nunca. Em 1973 uma menina-mulher chegava à cidade com o sétimo ano do liceu debaixo do braço. Trazia um fogo no olhar, uma luz diferente, mesclada entre as praias e a serra. Sentada no miradouro do jardim da Estrela não via os pombos das aldeias à volta de Leiria nem as gaivotas fugidas à tempestade de São Pedro de Muel. Outra paisagem, outro povoamento. Era uma menina-mulher e as «maçãs do rosto» cheiravam mesmo a maçã. Todo o seu rosto era uma geografia de sentimentos. No seu cabelo apetecia-me semear todos os meus sonhos. E os sonhos dela. Nos seus lábios apetecia-me matar toda a minha sede. E a sede dela. Nos seus ouvidos apetecia-me contar todos os meus segredos. E ouvir os dela. Hoje, 30 anos depois, a mulher-menina mantém intacto o fulgor dessa geografia de afectos. A voz é igual à voz desse tempo inicial, tempo de descoberta e de fascínio. Trinta anos depois, na passagem do tempo, nada se perdeu do timbre, da altura e do calor dessa voz que trazia o campo para a cidade. A voz da menina-mulher abria-me as portas de todos os celeiros, de todas as adegas, de todas as casas, de todos os palheiros. Ouvi-la era ser, de repente, cavador e abegão, pastor e lagareiro num lagar que produz o mais fino azeite da Serra de Aire. Hoje ouvir a sua voz de mulher-menina é estar de novo no meio da eira, saber a gramática das sementeiras, ouvir a campainha dos bois, rezar para que não haja colheitas perdidas, oferecer vinho a quem passa no dia de Pão por Deus. O amor não morre nunca.    

José do Carmo Francisco

(Óleo de Romaine Brooks)

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